Diversidade no mercado criativo


Costurando as bordas

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Corrigir a questão da diversidade no mercado criativo é uma questão humana e passa por não fetichizar a pobreza

por Mateus Rezende, Gestor de Comunidade da Questtonó

Me lembro de ter visto um desses mini-docs no Youtube que falava sobre a questão de jovens de países desenvolvidos que vão para a África fazer algum trabalho voluntário. Entusiasmados com “a relevância de seu trabalho”, muitos acabam alimentando suas redes sociais com fotos ajudando crianças, retratando a vida de pessoas humildes e posando como benfeitor.

Pensando na realidade do Brasil, a pouco tempo discuti com um amigo australiano o que alguns têm chamado de poor porn, ou seja, a exploração da pobreza através do turismo, ou a mera utilização de imagens e histórias de pessoas em situação frágil de forma gratuita e sem nenhum cálculo de retorno para elas.

Desde que me tornei designer, sempre escutei a repetição de frases como “o design precisa resolver o problema das pessoas”, ou mais recentemente “o design precisa colocar o ser humano no centro de tudo”. Em tese, o que criamos deveria sempre servir para suprir necessidades e transformar realidades de forma positiva. Porém, quando olhamos para as classes mais baixas e criamos “soluções” para as frações menos favorecidas de nossa sociedade, estamos realmente buscando resolver problemas ou estamos praticando mais uma forma de exploração?

Será que não estamos agindo como mais um estudante branco de classe média alta, que tira um ano sabático para fazer voluntariado na África e recheia seu Instagram de fotos como o bom samaritano?

Com medo de eu mesmo me tornar mais um desses exploradores de poor porn, precisei de um bom tempo até entender a razão de estar escrevendo esse texto, principalmente através da empresa onde trabalho. Há três meses sou responsável pela gestão de comunidades na Questtonó, ou seja, eu crio e organizo eventos, encontros e oficinas que ocupam nosso espaço físico, que foi desenhado para se tornar um hub de inovação coletiva, um local de troca e aprendizado através do design e das pessoas.

Nesse curto período de tempo, entre alguns eventos e encontros que organizei, vi nascer uma vertente que começou a despontar e não só ocupar a Questtonó mas também meus pensamentos diários: a desigualdade social e a importância de costurar as bordas de nossa sociedade – de criar diálogos entre as culturas periféricas e a pequena classe dos ricos do Brasil, que mesmo sendo pequena, segura seis por cento de toda a renda de nosso país.

Pouco antes de embarcar nessa jornada, de abrir nosso espaço para a sociedade e tentar transformar um espaço privado em algo um pouco mais público, passei quatro anos no Japão, ontem tive a experiência de morar em um dos países com a menor desigualdade de renda entre os países mais ricos do mundo. E foi também no Japão onde retornei à faculdade e comecei a estudar tópicos relacionados à desigualdade social e o futuro do capitalismo.

Nasci e cresci na periferia, então a ideia de morar fora do país e até mesmo cursar uma universidade fora nunca nem foi um assunto dentro da minha casa. “Terminar os estudos e conseguir um bom trabalho” era o que minha mãe talvez considerasse como sucesso. Porém, depois de ter passado pelo curso superior, me tornado designer e rapidamente entrar para a faixa dos 6% com maiores renda do Brasil, rapidamente fui tomado pelo sentimento de não pertencer ao grupo das pessoas de baixa renda – porque obviamente minha renda não era mais baixa. De certa forma, isso me tirou também o sentimento de legitimidade em poder falar e discutir tal assunto, fosse entre meu círculo de amigos – maioria de classe média alta – ou fosse dentro do meu ambiente de trabalho.

Visionários da quebrada

Nesse curto período de tempo pós-Japão, eu tive também a grande sorte de me encontrar no mesmo espaço físico que a Ana Carolina Martins, essa mulher que costura e dá vida a palavras capazes balançar os alicerces de pessoas que estejam aptas a abrir seus ouvidos e repensar formas de reduzir o abismo que separa a periferia do centro rico e branco. Assistir ao documentário Visionários da Quebrada, idealizado e dirigido por ela, e também escutar algumas de suas palavras, me fez olhar para dentro, rever minhas origens. Ele me permitiu também entender que sim, eu não só posso, como deveria me tornar um agente de conexão entre esses dois mundos dentro do mesmo Brasil.

No documentário, encontrei diversas personagens que falavam da importância de não só mostrar a inovação e criatividade das periferias para os centros ricos, mas também a necessidade de retratar as margens através de um filtro que não seja o do “coitadinho”, do “inferior”.

A primeira exibição que realizamos em nosso espaço foi em um encontro do Grupo Nós, organização que movimenta inúmeros projetos para suportar jovens em condição de abrigo. Talvez por estar próximo desses jovens e poder, de certa forma, revisitar minhas origens, e também por ter conhecido a Ana e seu documentário, a agenda que fui desenhando para grande parte dos eventos e encontros dentro da Questtonó convergiram em volta da discussão sobre diversidade, cultura periférica e marginal.

Diversidade em pauta

Nos últimos meses, além de uma exibição aberta do Visionários da Quebrada, também desenhamos uma edição especial do PechaKucha Night São Paulo, que teve como foco a apresentação de histórias de pessoas que inovam na dificuldade e que se orgulham de costurar as bordas e aproximar as margens ao centro.

Criar um espaço para a comunidade LGBTQ+, para jovens que cresceram na periferia como eu e que agora estão ganhando o mundo, e para mulheres negras e periféricas foi uma das maiores honras que já tive. Receber a Ana, e deixar suas palavras cairem como adagas afiadas no peito dos espectadores que vieram assistir ao seu documentário também criou uma sensação de empoderamento.

Mesmo assim, o público desses dois eventos, como também o quadro de funcionários da Questtonó, foi majoritariamente branco e certamente de classe média e alta. O que certamente me trouxe o medo de estar seguindo rumo ao “fetiche da pobreza”, o tal do poor porn.

Mesmo eu sendo um representante dessa realidade periférica, usar a Questtonó como plataforma desse discurso ainda me gera dúvidas. No ano passado, publicamos uma fotografia de final de ano, um gif animado, com toda a equipe sentada na arquibancada. Em um comentário super pertinente, alguém apontava a falta de negros em nossa equipe.

Com a diversidade se tornando uma importante pauta em nossa sociedade e nos negócios, muitas empresas estão finalmente despertando para esse enorme problema histórico que precisa ser corrigido. No entanto, cada corporação tem sua forma de trabalhar a situação. Algumas trabalham com cotas, outras com a criação de times com diversidade.

No caso da Questtonó, eu observei um movimento de busca por designers negros e pessoas vindas da periferia. Porém, essa parece ser uma tarefa complexa. O mercado criativo ainda é majoritariamente constituído por pessoas de classe média e alta, os que são capazes de alcançar um curso superior e possuem o privilégio de ter o tempo livre para apenas estudar e se profissionalizar em áreas como a comunicação e o design. Ao mesmo tempo, o mercado criativo possui uma das maiores rendas no Brasil, ou seja, tornar-se um designer, por exemplo, provavelmente pode ser uma alavanca de mobilidade social.

Inspirado por essa constatação, e entendendo que meu status social foi alavancado pela minha profissão, entendi que resolver esse problema está muito mais além que procurar currículos de criativos periféricos e negros, – precisamos criar canais e formas de capacitar esses jovens e desenhar caminhos para sua inserção no mercado criativo.

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Design para as bordas

Assim nasceu o Design para as Bordas, um projeto voluntário e independente, que promove cursos de capacitação criativa para jovens de baixa renda. Recebendo primeiramente apoio da Questtonó, o programa primeiramente rodará cursos de design ministrados por voluntários.

As aulas acontecem aos sábados e domingos, utilizando os mesmos computadores que a equipe de criação faz uso durante a semana. Assim, o espaço ocioso do estúdio e as próprias máquinas ganham utilidade extra.

Os primeiros cursos ainda estão rodando em sua versão protótipo, com foco em design UX e UI. Os alunos, além do curso gratuito, também recebem vale-transporte e vale-refeição para cada dia de curso.

No momento esse custo está sendo levantado através de contribuições de amigos e pessoas próximas, porém a ideia é que o Design para as Bordas receba algum tipo de fundo ou patrocínio para que a ideia ganhe ainda mais força e gere impacto real. Em um futuro próximo, ainda esperamos criar um kit de replicação dos cursos, para que outros voluntários e até mesmo outras agências possam promover edições em seus escritórios.

As pautas de diversidade e a inclusão de classes sociais mais desfavorecidas no mercado de trabalho, são urgentes e precisam ser atendidas. Esse movimento precisa essencialmente ser feito com a consciência e crença na mobilidade social como forma de reduzir a distância que separa duas realidades tão diferentes em nosso país. E essa atitude deve partir do propósito dos gestores de qualquer empresa, não apenas como uma forma de gerar visibilidade ou se enquadrar nas “tendências do momento”.

Marcas e corporações precisam investir e empoderar pessoas de origem indígena, negras e LGBTQ+, não só apenas explorar suas imagens e se apropriar de seus rostos para alcançar as metas de vendas do ano. Está na hora da periferia estar no centro, ser o centro. Está na hora de corrigir as décadas de desigualdade construída à base da pura exploração das maiorias pela minoria rica e branca.